


Conchas e cascas para coletar buracos, 2025. Vistas gerais da exposição. Curadoria de Marina Schiesari. Espaço Lapa Lapa, São Paulo, Brasil. Crédito: Estúdio em obra.
Conchas e cascas para coletar buracos¹
É dia de greve. No quintal, brinquedos abandonados repousam entre roupas e toalhas estendidas ao sol. Fazendo-lhes sombra, papéis translúcidos, suspensos e marcados por veios, deixam entrever nervuras — reminiscências das cascas tênues das árvores. À espera, pilhas de louça se acumulam como os sabonetes ressequidos, a equilibrar-se sobre as clavículas. Ninguém sabe seus segredos: aspirantes às pérolas, vivem nas conchas desviadas, sujas de espuma.
Libertas a céu aberto, dispersam-se por campos e florestas, confundindo-se com os gestos do trabalho doméstico. Partilham território com varas, lanças, espadas — instrumentos de ferir, espetar, subjugar — e, nas fábricas, com outros pontiagudos: colam, costuram, refilam. Perguntam então: como romper tais ordens do atrito? Por que as bolsas, recipientes de coleta e armazenamento, não foram tratadas como monumentos?²
Abrem a boca em silêncio, guardando dentes como quem oculta armas. Sopro após sopro, desencadeiam ventos, raios e furacões, capazes de desmanchar o gesto bélico e, ao fazê-lo, abrir espaço para outra memória: aquela que restitui ao papel o tronco, arranca as segundas peles e as converte em túnicas de envelhecimento sabido. Recusam as armadilhas da suspensão, conferem vigor ao desequilíbrio, à queda, à repartição.
Não há mais muros para heróis obstruírem, nem estátuas nas praças para contornar, tampouco vozes capazes de reter os signos dos vivos. As portadoras das fábulas são todas: aquelas que desejam armazenar, segurar, preservar. Foram elas que escreveram seus nomes e os guardaram em gavetas — junto de bilhetes, receitas e magias — para um dia serem lidos, letra por letra, em gestos de admiração pelas próximas. Foram elas também que cavaram encontros assim, séculos adiante, semeados e colhidos por mãos que sempre souberam — e saberão — instrumentalizar abrigos e afagos. Não ergueram colunas nem ergueram estátuas: retiraram, cotidianamente, com conchas e cascas, os buracos.
¹ Texto elaborado em diálogo estilístico com As guerrilheiras, de Monique Wittig, cuja escrita inspira a tessitura e o ritmo deste fragmento.
² Referência direta à noção de “teoria da bolsa da ficção”, formulada por Ursula K. Le Guin, mobilizada aqui como contraponto às formas monumentais.
Marina Schiesari, 2025