De novo, de novo, 2025. Vistas gerais da exposição. Curadoria de Wes Chagas. Espaço Lapa Lapa, São Paulo, Brasil. Crédito: Chiara Sengberg.
De novo, De novo

Não há garantia de que rememorar os acontecimentos traga o mesmo êxtase vivido naquele instante. Mas ainda assim, continuamos repetidas vezes nos deixando guiar pelo desejo de recordar. 
A repetição perseverante entregue às incertezas do propósito também é central para o processo artístico, sobretudo quando falamos da necessidade do artista em repetir um gesto e suas formas resultantes. Tal gesto continuado mobiliza um acúmulo de conhecimento com relação à técnica que se quer apreender. Cada retorno ganha um novo sentido em sua produção artística, para que assim, se possa qualificar o processo.
Chiara Sengberg, Duda Breda, Fernanda Luz, João Balardin, Maria Barbosa, Nadira Yanez, Vitor Martins Dias, Yohannah de Oliveira e Yumi Shimada, formam um grupo de artistas que, apesar das diferentes linguagens e trajetórias presentes em sua lore, compartilham práticas e poéticas semelhantes devido ao processo de troca que os uniu. Em suas produções atuais, transitam entre a repetição do gesto e a recordação da memória pessoal. 
Esta mostra parte de uma reflexão hipotética, quase um delírio, para narrar como as lembranças recorrentes são manifestações viciadas do nosso desejo. Enquanto um sentimento derivado da falta, o desejo é compreendido na mostra como uma força com plena autonomia que seleciona os instantes vividos de novo e de novo, na busca pela mesma emoção eternizada na memória.
O percurso proposto para as três salas do Lapa Lapa dá vazão à ficção pessoal que rege o conceito da mostra. Na primeira sala, fragmentos de lembranças do campo do desejo aparecem como vestígios, flashes e sobreposições, resultando em um acúmulo de imagens que combinam a ficção e a realidade ao tentar extrair algum sentimento de saciação, sobretudo o prazer e o êxtase, por meio da repetição.
A segunda, foca nos desejos de retorno ao passado, reunindo lembranças de lugares transitórios que marcaram as artistas. São paisagens retratadas em fotografia e pintura sob um tratamento frenético, glitch e blur, sugerindo lembranças corrompidas pelo tempo, mas relutantes ao seu desaparecimento. Ver essas imagens é como contemplar um reflexo na água.
Por fim, a terceira sala reforça o paralelo entre o desejo de reproduzir lembranças e a necessidade de repetir o gesto artístico. As obras evocam o sentimento de falta na superfície das coisas, ao recorrer às dobras, torções e vincos, transcendendo a lembrança do campo sensorial para o campo físico do suporte. O eixo destaca ainda a importância do gesto para a trajetória do artista.
O desejo opera sobre nossa memória de forma teimosa e inflexível. Ele edita, distorce e hackeia os instantes. Sem a garantia de trazer de volta o vigor da sensação vivida, ele condena nossas lembranças ao eterno prazeroso loop.
A obra de João Balardin tem a cadeira e a mesa como seu elemento motriz. Ao apropriar-se do objeto e transformá-lo em um suporte inusitado, o artista inverte sua utilidade e seu valor simbólico.
O artista retrata, nos encostos, assentos e pedais, situações enigmáticas de atmosfera melancólica, originadas de um vasto acervo imagético. Em "He remembers those vanished years", por exemplo, Balardin utiliza uma frase de um famoso filme para criar uma imagem reconstruída, na busca por recuperar uma memória que se deteriorou.

Desde 2013, Maria Barbosa situa suas pinturas no campo da abstração, partindo de telas previamente pintadas para criar situações delirantes que celebram a sexualidade e o hedonismo. Ao sobrepor camadas de tinta a óleo em cima das formas corporais erotizadas, a artista submete nosso olhar a um jogo cromático ilusório, no qual a cor revela e oculta elementos, negociando com nossa malícia e percepção óptica. 
Barbosa intencionalmente preserva vestígios do projeto pictórico original em suas telas, sobrepondo camadas de pigmento, linhas e formas que tentam se ajustar em nosso campo de visão.

Duda Breda concentra-se na performance de masculinidade, sobretudo do homem gay, para elaborar suas fotografias e colagens. Sem negar as negociações e pactos com as estruturas vigentes, o artista explora o corpo masculino tanto como um instrumento de desejo quanto como um dispositivo de validação dos códigos normativos.
Delicadezas amplia a pesquisa de Duda com a colagem e seus desvios semânticos.  Com os recortes sobrepostos, a obra coloca em diálogo cenas de tensão sexual, edificações e iconografias da história da arte, formando um léxico visual atento às poéticas da arte homoerótica.

Desde 2021, Chiara Sengberg tem integrado de forma sensível em suas obras o acervo de fotografias e vídeos caseiros de sua família. Ao mesclar esses registros com brinquedos relevantes para as infâncias brasileiras, a artista ativa o imaginário coletivo, criando noções de pertencimento e desejo de retorno às experiências brincantes.
Nas esculturas Casa-biombo, Sengberg transfere imagens de VHS do contexto de sua infância nas esculturas geométricas que aludem ao conhecido jogo de peças Tangram. As imagens sob efeito glitch evocam o desgaste visual dessas lembranças, motivando reflexões sobre o hábito de recordar.

Yohannah de Oliveira conjuga diversos materiais que se acumulam no seu percurso artístico, respondendo cada qual as necessidades que a abstração, seja em pinturas, cerâmicas ou objetos tende a apresentar. Nessa pintura, produzida no contexto da mostra, Yohannah retoma duas importantes vertentes da sua pesquisa: os registros de viagem e a memória difusa.
A representação quase figurativa, inédita na prática da artista, sugere uma lembrança elaborada em um lugar transitório, sem elementos indiciais de uma geografia específica. O único dado que posiciona a situação na ótica pessoal é o ponto de vista de banco traseiro de um carro em movimento, narrativa ampliada pelo tratamento frenético da pincelada. Trata-se de uma cena marcante na memória da artista que, sob a atmosfera melancólica, imprime essa lembrança como um flash que incide rapidamente.
  
Fernanda Luz traz para suas paisagens o embate entre vegetação e urbanização, buscando o limiar entre esses dois agentes fundamentais dos centros urbanos.
A artista solta suas pinturas no espaço, permitindo que elas interajam diretamente com a luz e a arquitetura do entorno, ao mesmo tempo, nos convida a observar os detalhes dos pigmentos e das pinceladas. Maleza parte de registros feitos no cemitério Necrópole, buscando a atmosfera das memórias e das ausências que permeiam esse ambiente, o que, de certa forma, reflete a delicadeza das pinturas.

No seu percurso artístico, Yumi Shimada procurou expandir as imagens de seu acervo para além do suporte bidimensional, criando arranjos que possibilitam sua suspensão no espaço. A partir da série intitulada “penduricalhos”, iniciadas em 2024, seus trabalhos passaram a conjugar recortes de arquivos visuais com fios de arame torcidos de forma quase meditativa, o que mais tarde influenciou Shimada a expandir o gesto reiterado da torção para elaborar Marieta, obra da sua produção mais recente. 
A instalação parte do cabide da sua mãe, Marieta, já falecida. Na parte de trás do cabide, o nome dela foi escrito pela artista quando criança. As cordas vermelhas sugerem a silhueta de um corpo que já não está mais presente, evocando as lembranças mais persistentes em registros palpáveis na torcedura da corda. A obra também incorpora elementos comuns da escultura, explorando noções de peso, sustentação e tridimensionalidade.

As pinturas de Vitor Martins Dias concentram-se na figura da cama, explorando as intimidades que envolvem esse espaço privado a partir dos vestígios deixados em lençóis. O artista enfatiza os vincos, dobras e amontoados de tecidos que deixam ver os rastros dos corpos que passaram por ali, tanto nos encontros noturnos quanto nas noites mal dormidas. 
A presença de elementos ambíguos posiciona as obras no campo das incertezas, possibilitando leituras suspensas acerca do que esses lençóis querem nos contar: uma mancha no lençol pode ser suor ao mesmo tempo que pode ser fluido corporal; uma elevação sugere uma dobra saliente, mas também a lembrança de um corpo que já habitou aquele espaço. 

A noção de iminência é central para a pesquisa de Nadira Yanez. Em suas obras, ela captura as situações propensas à queda ou à transformação, utilizando, sobretudo, da cerâmica, enquanto linguagem que raramente se associa a uma temporalidade específica.
Na obra Matriz, elaborada por ocasião desta mostra, Yanez parte da etimologia da palavra “mãe”, apresentando um sistema de filtros por onde as memórias e desejos são renovados repetidas vezes, dando origem a novos nascimentos. A artista faz conviver elementos como cobre e suas soluções com o gesso e a cerâmica, explorando suas interações estéticas e sinalizando para uma motivação que flerta com a alquimia.  

Agosto de 2025,

Wes Chagas
Curador




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